quinta-feira, 8 de outubro de 2009

deslocamentos

André Antônio

Quando chegamos à escola Marechal Eurico Gaspar Dutra pela manhã, muitas turmas ainda estavam sem aula e vários grupos de adolescentes se espalhavam pelos corredores claros e ventilados do lugar, fazendo uma balbúrdia. Na UR-11, as árvores espalhadas não impediam que o sol forte incomodasse. O professor de artes do lugar, Marconi Bispo, nos guiou, e tive receio ao me dirigir com os equipamentos de projeção para a sala dos professores: olhando em volta, vi alguns alunos nos observando com curiosidade, comentando entre si, rindo; outros nos ignorando, mostrando que tinham muito mais coisa para se preocupar. Como eles iriam reagir à sessão da Balsa? Gostariam, odiaram, ficariam apáticos? E no debate, fariam perguntas cruéis e irônicas, nos desarmando a todos? Essa apreensão me invadiu, porém, junto com uma estranha nostalgia pelos tempos do colégio (que talvez Milena, pelo que percebi, tenha compartilhado). Estranha porque não olho esses tempos como particularmente felizes. Mas ao ver grupinhos só de meninas (uma deitada no colo da colega, com uma revista cor-de-rosa de dicas de namoro aberta, riscada, cheia de coraçõezinhos); outro só de meninos (bonés e tapas brincalhões); outro misto, todos rindo (talvez de uma piada, talvez de nós); outro cheio de meninas e só um menino... ao ver tudo isso – todos com a mesma farda mas cada um, das mais variadas maneiras, lutando para construir visualmente para si uma identidade própria – uma estranha saudade me invadiu, e não tive como não lembrar de um diálogo do filme Watchmen, que é mais ou menos o seguinte: “não importa qual seja o passado – à medida que ele vai se distanciando, fica sempre mais e mais brilhante”.  Mas as referencias pop, aqui, não terminam em Watchmen ou na revista da garota deitada. Já que, quando Marcelo perguntou às oitavas séries e primeiros anos reunidos já no auditório (o data-show já preparado e o filme pronto para ser exibido) de que tipo de filmes eles mais gostavam, Velozes e Furiosos e Um amor pra recordar (citado por algumas meninas empolgadas sentadas no canto esquerdo da sala) foram os campeões. Fiquei ainda mais preocupado.

Não que o filme de Pedroso seja alguma espécie de “obra do Alto Modernismo” ou algo parecido, mas é incontornável o fato de que Balsa não foi realizado a partir de uma integração com a cultura das mercadorias de massa. O estranhamento, então, ocorreu sim ao longo da sessão. E esta foi bem barulhenta: a platéia uivava em uns planos, batia palmas sarcásticas em outros; ora fazia um “ooh” irônico, ora bocejava.  Aquilo me lembrou uma sessão lotada de Matrix Reloaded no Cinema São Luís (a diferença desta é que as pessoas estavam gostando do filme). Uns cinco alunos dormindo, outros tanto perguntando o quanto faltava para a projeção acabar e, quase no fim, uma pérola: “professor, o senhor não disse que ia passar um filme?”. Não fosse o grito de torcida: “demorô, demorô, demorô...” quando os créditos finais subiram, teríamos acreditado mesmo em Marconi quando ele falou: “houve tudo, menos uma rejeição”. No debate, veríamos que ele estava certo, apesar de apenas um aluno disse que achou o filme “massa”. Os outros, talvez por educação, disseram que foi “mais ou menos”; outros, ainda: “admito, foi chato”.















Marconi mediava e participada do debate com Marcelo. Sua capacidade de dialogar com a turma sem modificar o jeito dela foi incrível. O público soube prontamente apontar o que não tinha gostado no filme: “deveria ter falas, por que não tem?”; “poderia ter entrevistas, ajudaria a entender”; “com tantos temas interessantes, como a corrupção ou os buracos nas ruas, por que, er... uma balsa?”; “podia até haver música, que melhorava”. Marcelo replicou, chamando atenção para a proposta do filme de construir uma narrativa diferente das que eles estavam acostumados a ver, uma que privilegiasse os detalhes imperceptíveis do cotidiano e convidasse a um outro ritmo. Refleti que é como se na estética do filme houvesse algo da descrição do crítico literário Andreas Huyssen sobre nossa época: “quanto mais rápido somos empurrados para o futuro global que não nos inspira confiança, mais forte é o nosso desejo de ir mais devagar”. E não por qualquer nostalgia por uma época passada mais orgânica e harmoniosa, mas como uma atitude, estética e também política mesmo, frente ao presente. Tentei conectar essa proposta, essa configuração ao universo dos alunos da Eurico Gaspar Dutra. De fato, pensei a princípio, tal “aceleração capitalista” às vezes parece distante em um país de modernidade periférica como o Brasil, conforme se percebe prontamente em um lugar como, por exemplo, a UR-11. Mas ela chega; e chega sobretudo nos ritmos, nos recortes, nas modas da cultura de massa onde esses alunos se inserem para construir uma subjetividade. Qual seria o abismo entre nosso público e o filme? Não é possível, claro, excluir o fato de que aqueles alunos estão de tal maneira inseridos nesse circuito simbólico da estética televisiva mercadológica que apresentam uma dificuldade muito maior de dialogar com propostas diferentes. Mas é impossível reduzir a situação, demasiado complexa, a apenas essa causa. 













Ao participar daquela sessão, pensei estar diante de uma geração cuja sensibilidade se relaciona de maneira muito diferente com a imagem. Para mim é algo ainda bastante opaco. Lembro que quando me matriculei em uma disciplina do 1º período do curso de Cinema da UFPE, a professora pediu para os alunos (de uma classe social bem diferente dos alunos da UR-11) citarem um filme importante para eles e onde ele tinha sido visto: no cinema, na TV, ou em outro lugar. A maioria da turma – recém saída do terceiro ano do ensino médio – tinha visto seu filme na TV, a partir ou não de um DVD. Esse dado é significativo (ficamos sabendo que vários alunos da Eurico Gaspar Dutra – certamente não por sua vontade particular – nunca sequer foram a um cinema)? Que regime de imagem essa nova geração demanda?

Aliás, Roger Bravo, do curso de Cinema, estava presente na segunda visita daquele mesmo dia: a escola Desembargador Renato Fonseca, em Olinda. A arquitetura padrão era bem semelhante à escola da UR-11, mas o clima, bem diferente. Quando chegamos já estava escuro. A sessão seria às 19h, durante a aula de história do prof. de história Rafael Diniz, que iria ajudar na mediação do debate e nos apresentar à turma. Dessa vez era só uma (de mais de cem, passamos a um público de quase 50 pessoas). A faixa etária não era a mesma. Havia de jovens adultos a senhoras (uma das quais perguntou se o filme que estavam prestes a ver era romântico). A atmosfera era muito mais tranqüila. Tivemos um problema com o data-show e fomos obrigados a passar o filme numa TV – mais um obstáculo. Mas depois da sessão da manhã, não me preocupei muito com o pedido de “deixa aí!” quando a TV foi ligada no canal da novela.













O estranhamento diante do filme não diminuiu, como se pôde concluir com o “Glória a Deus!” de alguém quando o filme acabou com palmas de alegria. Roger filmando tudo e Milena fotografando, o debate começou. Os alunos dessa vez estavam bem mais interessados em entender o por que do filme não seguir os caminhos narrativos “habituais”. Alguns pareceram verdadeiramente encantados e sensíveis com a proposta de observar o cotidiano com menos pressa e mais carinho. Certas colocações foram mais que pertinentes, como alguém que comentou que, para quem não está inserido em toda a discussão cinematográfica que Marcelo estava trazendo no debate, Balsa seria “apenas um conjunto de imagens”. Pertinente também foi o prof. Rafael ter ressaltado para seus alunos o quanto uma experiência como aquela era importante para a formação intelectual e pessoal deles. Fiquei encantado pela forma como Rafael e Marconi conseguiram inserir aquela sessão no contexto dos conteúdos que eles estavam lecionando no semestre e numa tentativa de formação mais ampla (algo que já foi comentado num post anterior, “Encontros”). Se a experiência com o filme em si foi estranha, o debate ajudou a pensá-lo de outra forma, a olhá-lo de outra perspectiva, a estender a sensibilidade para lugares antes impensados: o melhor que um debate sobre cinema pode alcançar. Foram duas sessões muito diferentes, com questões entrelaçadas, que gosto de relacionar com uma belíssima sequência de 24 city, de Jia Zhang-Ke: depois de várias entrevistas com pessoas que trabalharam numa grande fábrica que está prestes a ser demolida, ao som de uma melodia quase melodramática, a câmera se detém em uma garotinha andando de patins em círculos, ao som de uma forte música techno e perguntam se ela alguma vez já entrou naquela fábrica. “Não”. 














É difícil registrar num único texto todas as reflexões que surgiram e ainda estão surgindo a partir dessa proposta de deslocamento, de levar a Balsa a lugares e públicos aos quais tradicionalmente não chegaria. Mas é preciso ressaltar a força de ter discutido intensamente um filme, um produto cultural, modos de sensibilidades, propostas narrativas com pessoas que, na maior parte do seu tempo, não o fazem. Foi impressionante vê-los saindo de debates onde o que prevalece é a funcionalidade instrumental do que é discutido e ver como justamente essas coisas aparentemente sem função imediata, como um filme, abrem a porta para uma dimensão desconhecida. Marcelo, depois do debate e saindo da escola, resumiu meu sentimento: “espero que tudo isso de alguma forma germine, por pouco que seja”. Não pude deixar de lembrar da referência do teórico de cinema Jacques Aumont a “nós, que temos o luxo do pensamento estético”. Depois desses debates, preciso reiterar uma vontade bem antiga e não só minha: é um luxo que tem que deixar de sê-lo. 

Um comentário:

neco tabosa disse...

que experiência do caralho, símios.

parabéns!