quinta-feira, 15 de outubro de 2009

debate

André Antônio

Balsa foi exibido no Cineclube Dissenso no último sábado, como parte da proposta de distribuição já tão comentada por aqui em posts anteriores. E o debate depois da sessão foi, conforme esperávamos, extremamente rico. Acho mais interessante não fazer, aqui, apenas uma descrição de como ele foi. Prefiro, de alguma forma, tentar continuá-lo. Sim, muita coisa interessante foi dita, sugerida, discutida, interpretada... mas aqui quero só tocar naquilo que mais me chamou atenção. Assim, sem mais delongas, gostaria de retomar duas falas do debate.


A primeira é a de Fernando, um dos membros do Dissenso. Depois do seu inspirado elogio ao filme, ele tentou articulá-lo a uma “vertente” do cinema contemporâneo e, também, a uma palestra que o professor de Comunicação da UFRJ Denílson Lopes havia feito no seminário “Interseções” justamente sobre tal vertente. Trata-se, na verdade, da estética do tempo dilatado (ou desacelerado), da desdramatização, dos minimalismos do cotidiano, da desnaturalização da ação humana no mundo, da postura straubiana de lembrar que “as coisas estão aí”. Denílson vê essa proposta presente já mesmo no cinema de Ozu. E podemos vincular a ela vários cinemas de hoje: de Gus Van Sant a Hou Hsiao-Hsien; de Béla Tarr a Cao Guimarães. Poderíamos, aliás, ler a seguinte sinopse do curta Sin Peso, de Cao: “O ar que sai do peito em vozes multiformes no comércio das ruas não é o mesmo ar que balança os toldos multicoloridos que protegem do sol e da chuva os donos das mesmas vozes. Dois pesos diferentes configuram o frágil equilíbrio da vida nas ruas da Cidade do México”. Ora, não é sobre os mistérios desse segundo tipo de ar que essa “corrente” do cinema contemporâneo se debruça? Se a fala de Fernando já tinha feito esse link valioso entre a Balsa e essa, hm... “poética”, o fato de Pedroso ter dito que Five, de Kiarostami, foi uma influencia crucial para o filme, reforçou e confirmou o link. Mas... o que esse tipo de cinema tem a nos dizer? Por que ele dialoga de maneira tão forte com nossos contextos presentes e traz de maneira tão contundente uma forma de sensibilidade? Claro, aqui não vou iniciar uma especulação dessa envergadura, mas talvez relembrar a citação de Andreas Huyssen que fiz no texto anterior, “Deslocamentos”, já seja um primeiro passo.


A segunda fala que quero resgatar é a de Mateus, feita muito tempo depois da de Fernando, mas mantendo com esta, a meu ver, uma relação importante. Mateus citou Walter Benjamin, mais precisamente o texto “O narrador”. Se minha memória me permite resumir de maneira bem esquemática (li o texto ano passado), nele Benjamin fala sobre o fim da possibilidade de narrar experiências na modernidade capitalista, onde as tradições são desvalorizadas e consideradas empecilhos. O narrador, na verdade, seria uma figura das sociedades pré-capitalistas, onde as pessoas viviam em outra temporalidade, em ritmos mais lentos e tinham uma noção mais completa do processo de trabalho geral. Uma época onde o velho – ou seja, a figura que mais teria acumulado experiências na comunidade – seria alguém de suma importância e em cuja narrativa os jovens precisariam se apoiar para a ela dar continuidade. Um contexto bem diferente da sensibilidade fragmentária e acelerada da modernidade.


A associação de Mateus foi interessante: a estética de um filme como Balsa teria a ver com uma espécie de retorno a essa narrativa impossível no contexto do capitalismo avançado. Uma ressalva: não lembro se a associação foi de fato feita por Mateus, ou se ela apenas me ocorreu tão logo ele citou o texto. De qualquer forma, é uma associação possível, mas, e é isso que quero ressaltar, perigosa e um tanto fácil. É notável a nostalgia de Benjamin por essa “época perdida”, sim, mas ele sabe também que é impossível retornar a ela. A proposta estética de Benjamin, então (e vários de seus comentadores, como Terry Eagleton, podem apoiar o que digo), se dá não numa recusa do presente, mas exatamente na sua aceitação. O artista, para ele, deve trabalhar com as ruínas.


Assim, para mim, essa vertente estética identificada por Denílson Lopes e Fernando não desejaria voltar àquele passado mais lento e completo. Pelo contrario, prefiro apostar em outra hipótese: a de que a diluição do olhar (conforme descreve Jacques Aumont, mas não só ele) que marcou a ascensão da subjetividade moderna, teria chegado a tal ponto hoje que é justamente o “vazio”, a suspensão de sentido, algo que talvez esteja por surgir nesse espaço de ruínas o que interessa a esse cinema. Está longe, porém, de ser uma postura niilista, desencantada ou algo parecido, como o provam todos os cineastas citados neste texto.

Bom... hipóteses, questões que os convido a refutar, aprofundar, indicar, complementar... mas o que é melhor: só despertadas às custas de um debate cinéfilo. Então só tenho a agradecer a Lumière, que constituiu um dos tópicos mais bonitos do debate e a quem Phillipe Garrel chama de “o mestre da seita”. Que o debate continue.

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